Depois de um tempo me dedicando às graphic novels mais fofinhas e coloridas, decidi que era chegada a hora de partir para uma com um tema mais sóbrio e Persépolis, que já estava há um bom tempo na estante, foi a escolhida, marcando assim a minha estreia em dois nichos dos quadrinhos: as graphic novels autobiográficas e os quadrinhos iranianos.
Marjane Satrapi nasceu em Rasht, no Irã, em 1969. Aos dez anos se viu obrigada a usar o véu islâmico e a frequentar uma escola só para garotas. Ela vivenciou a derrubada do Xá em 1979 por meio de uma revolução popular que posteriormente acabou se transformando em um regime ditatorial. Com a violência perpetrada pelo regime cada vez mais frequente e a guerra contra o Iraque contribuindo para fazer ainda mais vítimas, Marjane ficou cada vez mais revoltada contra o sistema. E isso só foi possível porque a garota apesar de não ter a cultura do país renegada de sua educação, foi criada em um ambiente bastante aberto às discussões políticas e sociais e à cultura ocidental. Uma educação progressista que a tornou naturalmente questionadora e a colocou em rota de colisão contra o governo, motivo pelo qual os pais tiveram que a enviar para morar no exterior durante uma grande parte de sua adolescência. Depois de retornar ao Irã, onde concluiu seus estudos, Marjane mudou para a França onde atua como autora e ilustradora. Foi ali, na França, que ao ser questionada sobre sua história por seus amigos, surgiu Persépolis. Uma obra autobiográfica escrita em francês e publicada originalmente em quatro volumes, que foram traduzidos e reunidos em um volume único pelo selo Quadrinhos na Cia da editora Companhia das Letras (a obra também foi publicada no formato original de quatro volumes).
Marjane abarcou cerca de quinze anos de sua vida nessa graphic novel, sem deixar de lado o contexto histórico-político dos persas, dos tempos antigos até a época vivida por ela. O que mudou ao longo das páginas, foi como essa contextualização foi feita. Primeiramente sob o prisma infantil e ingênuo da garota imediatista e revolucionária, passando pela adolescente contestadora, a jovem abnegada prestes a se reencontrar, até a adulta que finalmente encontrou o caminho que queria trilhar. Todas essas fases transparecem no traço dos desenhos e na escrita de Marjane, que mesmo tendo-os rememorado mais de vinte anos depois, conseguiu fazê-lo sem o vício da ótica adulta e se entregou nua e crua aos seus leitores. Com todas as suas virtudes, falhas, conquistas e fracassos. Só por isso, Marjane já nos conquista definitivamente.
Mas, além disso, há toda a beleza do traço de Marjane. Desenhos em preto e branco, simples, mas contundentes e que refletiram muito bem cada situação retratada, E é claro, há sua história propriamente dita. Os momentos de cumplicidade com os pais, suas brincadeiras na infância, e todo o sofrimento que seus familiares e conterrâneos sofreram. Em períodos anteriores ao seu nascimento, durante a revolução popular que derrubou o Xá e no período negro após a instituição do regime xiita. Toda a consciência política fomentada em sua família, contribuiu para que a história rememorada e contada por Marjane atingisse um certo grau de imparcialidade. Tudo o que há de errado no regime xiita foi exposto, mas não há o enaltecimento exacerbado da cultura ocidental em detrimento da sua. Há muitos questionamentos sobre a laicidade do Estado, sobre comunismo, sobre a cultura machista que tonou inexistente quaisquer direitos às mulheres e os interesses escusos do ocidente nas guerras do oriente. Quer seja como romance biográfico, ou como obra política, a leitura de Persépolis além de emocionar, informa e conscientiza. Além de Persepólis, Marjane também têm outras obras biográficas que fiquei com muita vontade de conferir. Há Frango com Ameixas em que ela traz a história do seu tio-avô e Bordados em que ela retrata as reuniões das mulheres de sua família na casa de sua avó.
Vale lembrar que Persépolis foi transformado em um filme de animação (produção francesa) em 2007. O filme foi escrito e dirigido por Marjane e Vincent Paronnaud, tendo concorrido ao Oscar em 2008 como melhor filme de animação.
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