Deuses Americanos (Neil Gaiman)

Em 1992 Gaiman foi morar nos Estados Unidos. E como imigrante recém-chegado naquele grande país, ele queria entendê-lo, ainda que a tarefa na maior parte das vezes fosse impossível. E, como escritor, não há melhor forma de tentar conhecer algo do que escrever sobre isso. Apesar disso, a ideia de escrever sobre mitos e colocar os Estados Unidos no centro disso tudo só veio em 1998.

“Eu queria que o livro fosse uma série de coisas. Queria escrever uma história que fosse grandiosa, excêntrica e sinuosa, e escrevi, e ela era. Queria escrever uma história que incluísse todas as partes dos Estados Unidos pelas quais eu estava obcecado e encantado, que costumavam ser os pedaços que nunca apareciam nos filmes e nas séries de tevê. ” (Página 8)

Deuses Americanos realmente é uma história grandiosa (ultrapassa as quinhentas páginas, e os personagens viajam praticamente de costa a costa do país), excêntrica (tanto no humor quanto nos personagens bastante peculiares) e é sinuosa (Shadow e Wednesday viajam por recantos obscuros e atalhos, e sempre que você acha que sabe para onde a história está se encaminhando, lá vem Gaiman com suas reviravoltas retraçando os caminhos). Para escrever essa história que mistura deuses, romance investigativo e uma road trip inusitada, Gaiman colocou os pés na estrada. Todos os lugares que aparecem na história (ou pelo menos a maioria deles) foram visitados por ele. E, ainda que alguns lugares sejam conhecidos (quer sejam dos filmes ou das séries de tevê), foi uma experiência interessante conhecer tantos outros pelo ponto de vista do imigrante.

A edição publicada recentemente pela Editora Intrínseca é considerada como sendo o texto definitivo e a edição favorita de Gaiman. Ela é uma mistura das edições americana e inglesa, com a mistura dos textos pré e pós-edição e do texto impresso. A edição reformulada tem cerca de doze mil palavras a mais do que a edição original de 2001.

A história tem início com Shadow, um homem condenado a seis anos de prisão, mas que após cumprir três está prestes a ganhar a liberdade por bom comportamento. Tudo o que ele queria era retomar sua vida junto à esposa. Mas, dois dias antes da sua soltura Laura morre e de repente Shadow já não tem mais para onde voltar. Ao sair ele conhece o misterioso Wednesday que lhe oferece um serviço. Shadow até reluta no início, mas acaba cedendo aos pedidos de Wednesday. Ambos então partem em uma longa viagem pelos Estados Unidos para angariar aliados para uma guerra iminente entre deuses velhos e novos.

Os deuses antigos foram trazidos pelos colonos, mas como o passar do tempo foram sendo esquecidos. Aprenderam a sobreviver à margem, a conviverem como pessoas normais, cheios de suas peculiaridades e excentricidades, mas pessoas reais, que labutam no dia-a-dia, bem nem todos, alguns se contentam só em trapacear mesmo. E há vários deles, provenientes dos mais diversos lugares: africanos, germânicos, hindus, nórdicos…. Foi particularmente muito bom poder conhecer o Sr. Nancy mais a fundo, antes dos eventos derradeiros que dão início às aventuras de seus filhos (veja Os Filhos de Anansi). E, enquanto pegamos carona nessa viagem, vivenciamos toda essa mistura de culturas que deu origem à sociedade americana, pontuadas pelas informações que abrem cada capítulo (música, religião, costumes, economia…). E também, há retalhos da história de colonização da América, trechos de histórias narradas por deuses, narrativas fantásticas de muito e muito tempo atrás.

Os deuses novos, por outro lado, estão na crista da onda, são a novidade e representam todas as mordomias e futilidades da vida moderna. Também vivem como pessoas normais, mas cheias de dinheiro, poder e fama. Deles não sabemos muito, afinal não há uma tradição, todos cheiram à aço, plástico e baterias de lítio, e fazem uso de misteriosos agentes, que até lembram o famoso agente Smith de Matrix, com suas perseguições implacáveis e tão descartáveis quanto poderiam ser para os deuses.

Improvavelmente, no meio dessa guerra entre o velho e o novo, está Shadow, que enquanto descobre mais sobre si, acaba percebendo que tem um papel a desempenhar antes do fim.

Para contar essa história Gaiman a dividiu em quatro partes: a primeira na qual conhecemos os principais personagens, começamos nossa viagem, conhecemos deuses e temos vislumbre dos primeiros embates entre as divindades; a segunda parte que traz o momento de calmaria que prenuncia a tempestade; a terceira parte e a tempestade em si; e, a quarta parte e o colocar dos pingos nos is. Em todas elas Gaiman adiciona mais elementos: novos personagens, mistérios envolvendo mortos caminhando no mundo dos vivos, desaparecimentos de crianças, a dúvida sobre a real identidade de alguns personagens e seus reais objetivos. Sobrou espaço para Gaiman se aproveitar até das lendas urbanas americanas envolvendo um certo deus do rock! E, ele pode até ter fornecido várias informações (que para alguns podem até ser demasiadas) durante a história, mas no fim, não deixou nada sem conclusão.

A leitura de Deuses Americanos não é muito fluida, principalmente por causa da estruturação da narrativa, bem diferente dos outros livros do Gaiman que já li. A trama de Wednesday e Shadow é quebrada várias e várias vezes por tramas paralelas, umas contemporâneas, outras bem antigas. Você até consegue ver como elas se relacionam com a trama principal, mas os ritmos diferentes de muitas delas quebram o andamento da leitura do livro como um todo. Apesar disso, esse é daqueles livros que eu pegaria para uma releitura sem pensar duas vezes. O humor de Gaiman, toda essa misticidade envolvendo os Estados Unidos e alguns personagens bem cativantes, garantiram uma ótima leitura.

Na introdução Gaiman fala que este foi um livro controverso e que corresponde a um caso de amor ou ódio. No meu caso foi amor, não cego a ponto de não enxergar os defeitos, mas amor mesmo assim. Já estou morrendo de curiosidade para ver como essa história ficará na série de tevê.

A edição também conta com alguns extras. Um posfácio que traz auspícios de novas aventuras (será?). Um capítulo (uma cena apócrifa?) retirado do livro. Uma entrevista com Gaiman publicada na edição inglesa de 2005, que traz algumas informações wtf, como o caso do leitor que tentou aplicar os golpes de Wednesday descritos por Gaiman! Além disso, há também um texto com notas esclarecedoras do tradutor da edição brasileira, sobre as escolhas que ele teve de fazer durante a tradução. São bons adendos. Uma edição bem completa para se ter na estante.

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7 Comentários

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7 Respostas para “Deuses Americanos (Neil Gaiman)

  1. Ansioso pela adaptação!

    Curtido por 1 pessoa

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