O Conto da Aia (Margaret Atwood)

Há ‘hypes’ que vêm para o bem e se tem uma coisa que a série homônima (The Handmaid’s Tale) produzida pela Hulu conseguiu, foi colocar em evidência a obra publicada por Margaret Atwood em 1985. Nem vou entrar no mérito de discutir quem é o melhor entre o livro e a série, ainda que algumas pessoas tenham preferido a adaptação à obra original, porque nem comecei a ver a série ainda. Só posso dizer que as palavras de Atwood não poderiam ser mais pertinentes e consonantes com muitas das situações vivenciadas hoje, ainda que o romance tenha sido concebido como distopia. Podemos não ter aias, esposas, comandantes, anjos e olhos, mas a ingerência por parte de alguns grupos políticos e o medo imbuído pelos inúmeros casos de perseguição e violência levada aos extremos do feminicídio, ressoa muito a falta de liberdade a que estão submetidas as mulheres na sociedade distópica imaginada por Atwood.

É Offred, uma aia de 33 anos, que nos conta a história. O que foi uma excelente escolha da autora, pois ao estreitar as fronteiras de sua narrativa, ela garantiu que a trama nos fosse apresentada pouco a pouco, construindo uma sensação de inquietamento que torna a história de Offred ainda mais pungente. Mesmo que a protagonista não seja daquelas construídas para angariar automaticamente a empatia do leitor. Offred pode ter seus defeitos e comete seus erros, mas não é por isso que merece a vida a que está submetida. Está aí uma lição de sororidade, diretamente de 1985, para nós leitoras. Mas, como eu dizia, é Offred que nos apresenta essa sociedade composta: pelas Marthas, mulheres destinadas à fazerem as tarefas do lar; pelas Esposas, mulheres de posses casadas com os Comandantes, provedores e de grande influência nas altas esferas da sociedade; pelas Filhas com seus véus brancos, destinadas aos casamentos arranjados; pelas Econoesposas, mulheres de posses mais baixas e que mantêm (?) uma certa liberdade (não sabemos muito sobre elas por não fazerem parte do círculo social habitual de uma aia); pelos Anjos, responsáveis por monitorar, proteger e cercear as Aias; pelos Olhos que mantêm os cidadãos sempre à vista na busca por transgressões, quem são e a quem respondem também não sabemos; e pelas Aias, a quem agora só é permitida a existência como mero receptáculo de vida. O que elas eram e o que tinham antes já não lhes pertence mais, a começar pelo nome, condenadas a partir de então a carregarem a partícula ‘of’ antes do nome do Comandante a que estão servindo. Essa partícula enfatiza que o que elas foram foi desligado e agora elas são ‘de’ alguém. Alguém a quem devem se sujeitar e passar por rituais de estupro para garantir um filho para o Comandante e sua Esposa. Nessa sociedade dividida por castas, a divisão das mulheres em castas com objetivos, obrigações e anseios tão díspares, garante a fragmentação necessária para impedir levantes e perpetuar o sistema vigente.

“Considero a possibilidade: talvez estejam me drogando. Talvez a vida que penso estar levando seja um delírio paranoico.

Nenhuma esperança. Sei onde estou, e quem sou, e que dia é hoje. Esses são os testes, e estou sã. A sanidade é um bem valioso; eu a guardo escondida como as pessoas antigamente escondiam dinheiro. Economizo sanidade, de maneira a vir a ter o suficiente, quando chegar a hora. ” (Página 133)

A narrativa de Offred não é linear. Ela vai e volta no tempo, enquanto nos deixa entrever a situação social vigente em Gilead, essa sociedade instituída em alguma antiga cidade dos Estados Unidos e que garante por meio do cerceamento e das punições severas a longevidade do regime e a independência em relação ao mundo exterior, ainda que turistas possam frequentemente visitar Gilead. Em Gilead crimes de falsidade de gênero, contra a vida (aborto) e a exposição e/ou guarda de figuras religiosas de outras religiões que não a vigente, são punidos com a morte. Nessa sociedade cabe às mulheres impor limites aos desejos dos homens porque eles nada podem fazer já que Deus os criou assim. Há uma imensa culpabilização da vítima. Se a mulher foi estuprada, a culpa é dela. Ela seduziu e Deus permitiu que isso acontecesse para lhe dar uma lição. Santa religião essa. Santo machismo nosso de cada dia. Bem diferente da nossa realidade né?

Mas qual foi o estopim que acarretou o surgimento de Gilead? Os EUA ficcional de Atwood foi assolado por anos com os mais variados venenos (pesticidas, bombas nucleares, bombas sujas, pandemias…), que passaram a acarretar o nascimento de bebês natimortos e/ou com deformações. Algumas mulheres para fugir de tal destino, fizeram ligaduras, se machucaram quimicamente… (os médicos mais tarde pagariam caro por fazerem tais procedimentos), até que a taxa de natalidade reduziu drasticamente. Haviam também aquelas mulheres que nunca quiseram ter filhos e que foram às ruas para clamar pelo seu direito de não existirem apenas com o intuito da reprodução. Essas rapidamente foram taxadas de Não Mulheres e encaminhadas para os campos de trabalhos forçados após a fundação de Gilead. A questão é que o regime gileadiano não surgiu por causa da baixa natalidade, afinal de contas, muitas das aias tinham famílias constituídas e filhos. O grande xis é que a baixa natalidade atingiu a classe dominante, que expurgada de seu “direito de reprodução” decide tomar à revelia daqueles que são comandados. A questão é maior do que apenas o feminismo, passa também pela ingerência do Estado e da Igreja na vida das pessoas. As implicações da trama de Atwood e a gama de discussões suscitadas por sua história, garantem a atemporalidade e a importância social e política da obra. Não se acanhe pelo ‘hype’, esse é daqueles livros que merecem ser lidos por todos ao menos uma vez na vida. É um verdadeiro exercício de autoconhecimento, de empatia, de repensar nossas atitudes, de lutar contra os preconceitos e o machismo tão arraigados.

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