A história de Fermina Daza e Florentino Ariza começa no presente. Ela uma senhora de 72 anos, casada com o doutor Juvenal Urbino e mãe de dois filhos já criados e que já estabeleceram suas famílias. Ele um senhor de 76 anos, de muitos amores carnais vividos, mas sempre a espera daquela que primeiro roubou seu coração. De antemão já sabemos que no atual momento, Fermina e Florentino não estão juntos. Mais de cinquenta anos se passaram desde que ela encerrou o relacionamento dos dois e se envolveu com Urbino. E, em seu longevo casamento, eles tiveram suas pendengas (e foram muitas), houve certo arrependimento, mas também foram felizes, até que a morte levou Urbino.
Com Fermina liberta de sua obrigação matrimonial, Florentino coloca-se em cena novamente, reforçando seus votos de amor por aquela que nunca esqueceu. Retornamos então ao passado e descobrimos todos os pormenores do relacionamento dos dois: o deslumbramento inicial, a proibição do pai de Fermina, a viagem empreendida para manter os enamorados distantes, as cartas telegrafadas, o arrefecer dos sentimentos, a separação, a adição de Urbino à equação. Começamos toda uma jornada desde o marco zero estipulado pelo primeiro encontro de Fermina e Florentino até chegarmos novamente ao reencontro dos dois e ao que o futuro lhes reserva. Além do tempo circular, é importante destacar a relevância do tempo psicológico para o andamento da trama. Muitos dos pormenores da história nos são fornecidos pelo fluxo de consciência habilmente empregado por Márquez. É assim que ele nos aproxima de seus personagens. É assim que Fermina, Florentino e Urbino nos cativam, mesmo cada um deles sendo falhos em vários momentos. Estabelecemos uma relação quase de amor e ódio com os personagens e é isso que os torna ainda mais verossímeis e a trama de O amor nos tempos do cólera ainda mais marcante.
Se a arte imita a vida, foi pedindo licença a esta que Gabriel García Márquez lançou as sementes do que viria a ser considerado o seu segundo melhor romance e sua melhor história de amor. Para dar vida à história de Fermina e Florentino ele se inspirou na história de seus pais. De Luisa que foi enviada para longe pelo pai que não aprovava seu relacionamento com Gabriel, e deste que se manteve firme em seu propósito de conquistar Luisa e sua família para que pudessem viver juntos o amor. Nem a distância, vencida pelas inúmeras mensagens telegrafadas, os separou e por fim a insistência de Gabriel e a resolução de Luisa venceram. A história de seus pais teve seu “final” feliz muito mais cedo, mas para Fermina e Florentino, Gabriel reservou uma trama mais épica.
Uma história cheia de meandros, de encontros e desencontros, de desilusões, de entrega, de resiliência e de espera. Um romance que em sua duração abarcou boa parte da história e dos costumes do povo colombiano, que flertou com o realismo fantástico e teceu críticas políticas, sociais e ambientais. É assim que O amor nos tempos do cólera se tornou tanto uma bela ode ao amor quanto um retrato sócio-histórico do período em que se passa a história, a saber, na cidade de Cartagena das Índias no final do século XIX: as ditaduras, a Guerra Civil, a falta de saneamento básico, o cólera e o misticismo em torno da doença, a demasiada importância dada às classes sociais, os conflitos sócio-políticos, os avanços tecnológicos; todos são temas que encontram espaço na história de Fermina e Florentino. É uma história sobre perseverança e sobre o direito de amar e ser amado na velhice. É também um pedaço da história e da vida do povo da Colômbia que sutilmente nos é apresentado. Cartagena foi um quarto personagem nessa trama amorosa, e foi realmente cativante enveredar por suas ladeiras empedradas, adentrar seus quintais frondosos, vislumbrar seus casarões e encarar a imensidão do mar do caribe. Esta obra é um ótimo exemplo de que a jornada (nesse caso a narrativa) é muito mais importante do que a conclusão, e que saber o fim não diminui o brilho da história.
“Era como se tivessem saltado o árduo calvário da vida conjugal, e tivessem ido sem rodeios ao grão do amor. Deixavam passar o tempo como dois velhos esposos escaldados pela vida, para lá das armadilhas da paixão, para lá das troças brutais das ilusões e das miragens dos desenganos: para lá do amor. Pois tinham vivido juntos o suficiente para perceber que o amor era o amor em qualquer tempo e em qualquer parte, mas tanto mais denso ficava quanto mais perto da morte.” (Páginas 393-394)
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