“Eu tinha ciúmes de sua escrita – a única escrita da qual eu já tive inveja.” Foram essas as palavras de Virginia Woolf sobre a obra daquela com quem manteve uma relação de estreita amizade, que envolvia trocas de cartas e revisões de manuscritos, Katherine Mansfield. Se cabe a Woolf ter um dos melhores exemplo do uso do fluxo de consciência em um romance. Mansfield foi a pioneira no uso e tem ótimos exemplos da técnica em seus contos. Katherine nasceu em 1888 na Nova Zelândia e mudou para a Inglaterra em 1902. Nesse período, o violoncelo detinha suas atenções. Foi somente ao retornar ao seu país natal em 1906 que começou a escrever contos, e mais tarde, em 1908, ao deixar de vez a Nova Zelândia e partir para a Inglaterra, foi que mergulhou de vez na vida boêmia comum aos escritores da época. Sua vida foi curta, Mansfield morreu aos 34 anos vítima de tuberculose, mas seus contos ressoam até hoje. Nesta pequena coletânea, que abarca os contos escritos por Mansfield entre 1915 e 1922, ela se mostra exímia em tornar o cotidiano envolvente. Ao mais esconder do que revelar e lançar muitas suposições e dicas em sua narrativa, seus contos podem durar poucas páginas, mas permanecem com o leitor que se vê enleado em elucubrações. Eu que não sou uma pessoa de contos, me vi enredada em vários deles. Críticas aos costumes, ao assistencialismo sob os holofotes, questões de classe e a construção do feminismo na sociedade patriarcal são só alguns dos temas abordados por Mansfield em sua obra. Alguns contos são realmente primorosos, quer seja pela estética, pela crítica implícita ou pela força de seus personagens, e merecem ser destacados.
A coletânea já começa com um dos contos mais famosos de Mansfield: Êxtase (Bliss) publicado em 1918. Um jantar, alguns convidados, uma revelação bombástica e uma história repleta de camadas e simbolismos que tacitamente Mansfield joga no colo do leitor. Esse também é o conto pelo qual Clarice Lispector conheceu Mansfield e caiu de amores por ela.
Em Je ne parle pas français (1918) temos o único conto narrado em primeira pessoa. Ele traz a história de um escritor francês que é arremessado à suas memórias por causa de um bilhete que encontra. É assim que Raoul Duquette tergiversa e envolve o leitor em sua realidade (o fluxo de consciência aqui beira à digressão), enquanto a verdade dá pistas e se escancara no final do conto.
Em As Filhas do Falecido Coronel (1920), Mansfield traz a história de Josephine e Constantia, duas irmãs solteiras que acabaram de perder o pai, do qual cuidavam em sua velhice. O conto fala sobre a perda do referencial masculino e sobre a jornada de descobrirem-se como donas de si mesmas, aprendendo a exercer a autonomia que tão tardiamente receberam.
A Jovem governanta (1915) traz a preocupação com a segurança tão inerentemente feminina. Sabe os vagões exclusivamente femininos nos sistemas ferroviário e metroviário do Rio de Janeiro? O conto de Mansfield faz um bom contraponto à necessidade que levou a lei estadual entrar em vigor no Rio. Chega a ser assustador perceber que algo tão comum em 1915, torne-se uma medida necessária em nossa sociedade dita evoluída.
A Casa das Bonecas (1922), Prelúdio (1917) e Na Baía (ausente na coletânea) compõem a fase familiar de Mansfield e se baseiam em sua infância na Nova Zelândia. A predominância do feminino nos contos não é à toa. A todo momento, na maioria das vezes de forma sutil, Mansfield retrata e questiona as condições femininas (até mesmo pela ótica infantil) na época. As mulheres destinadas a servir o chefe da casa (em coisas que ele facilmente poderia fazer por si mesmo), o casamento como meio de valoração da mulher (Ficar solteira? De jeito nenhum!), mulheres que têm filhos apenas por pressão do marido. Em A Fuga (1920) ela retoma o casamento. Retratando o cotidiano de um casal inglês em uma viagem cheia de imprevistos, ela mostra que a vida conjugal nem sempre é pautada pela visão puramente romântica dos relacionamentos. Mansfield se mostra excelente em achincalhar com muita sutileza.
Uma característica dos contos de Mansfield é que ela trabalha no cotidiano, algum momento derradeiro no qual uma tomada de decisão provoca mudanças substanciais nas vidas de seus personagens. Mas ela não vai além, como uma fotógrafa, ela nos apresenta retratos, imaginar o passado e na maioria das vezes o futuro a partir daquele momento eternizado, é uma experiência que cabe ao leitor. Uma que vale a pena encarar.
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