Decidir qual livro ler como representante da Romênia no Projeto Volta ao Mundo em 198 Livros não foi uma tarefa fácil. Não por escassez de autores e títulos, mas porque decidida a ler uma obra da Herta Müller tive receio de acabar escolhendo a obra errada e me decepcionando com a autora. Já ouvi e li tantas opiniões divergentes acerca de sua obra, e um bocado de pessoas com gostos parecidos com os meus não tiveram uma boa experiência com os livros da autora, que quando finalmente optei por começar com O Homem é um Grande Faisão no Mundo, foi com as expectativas lá embaixo. E que coisa boa é ser surpreendida positivamente. Ao menos neste, a narrativa de Herta é certeira, concisa e sem rebuscamento, mas ao mesmo tempo é de muita riqueza poética e transpira as feridas sofridas pelos alemães nascidos em terras romenas, como a própria Müller.
Em O Homem é um Grande Faisão no Mundo, Herta traz uma história que se passa em um vilarejo na Romênia pós-guerra durante o regime ditatorial de Nicolae Ceausescu. A trama acompanha a trajetória de uma família romena de origem alemã que almeja conseguir a documentação necessária para poder emigrar para a Alemanha Ocidental. Algo nada fácil quando todos, do mais baixo ao mais alto na hierarquia de poder, querem lucrar sobre o desespero alheio.
“Do campo de prisioneiros de guerra Windisch voltou ao vilarejo. O vilarejo estava ferido pelos muitos mortos e desaparecidos.
Barbara morrera na Rússia.
Katharina retornara da Rússia. Queria casar-se com Josef. Josef morrera na guerra. Katharina trazia um pálido semblante. Tinha os olhos fundos.
Como Windisch, Katharina vira a morte. Como Windisch, Katharina trouxera a vida consigo. Rapidamente Windisch ligou sua vida à dela.” (Página 56)
Tudo o que Windisch quer são os papéis para ele e sua família partirem para a Alemanha. Enquanto os aguarda, trabalha no moinho, “pagando” com farinha àqueles que podem decidir sobre o seu futuro, enquanto vive a contar os dias e os anos até a partida. Que com o escoar do tempo só se delineia como possível com o sacrifício de Amalie, sua filha, em se deitar com diversas figuras de autoridade do vilarejo. Um pagamento ao qual a senhora Windisch já teve de se sujeitar quando era prisioneira em um Gulag na Rússia no período da guerra. A guerra que lhe roubou seu verdadeiro amor, bem como a amada de Windisch. É assim que a história de Herta se delineia não somente como um retrato do preço da liberdade, como também dos relacionamentos marcados pelas tensões entre os gêneros gerada pelas expectativas sociais para os homens e mulheres e pelo preconceito arraigado nos costumes.
A narrativa é estruturada em pequenos capítulos que funcionam como frames. Retratos de momentos esparsos, fora de ordem e temporalmente distantes, que precisamos organizar para que a linha temporal surja. O texto de Herta é simbólico e bastante imagético. Nada em seu texto é dito escancaradamente. É preciso captar as analogias e entender as metáforas para que as entrelinhas se mostrem para nós. A história é curta, mas são nos pequenos detalhes que todo o contexto histórico da Romênia pós-guerra se descortina perante os olhos do leitor. São nos detalhes de um uniforme, do cantar de um hino, de uma lição escolar, que os desmandos do governo autoritário de Ceausescu são referenciados no texto. É na falta dos serviços básicos, no cerceamento e no controle firme sobre a liberdade de expressão e os meios de comunicação, que a realidade difícil no pós-guerra, não somente dos romenos de origem alemã quanto dos considerados romenos legítimos, é esfregada em nossa cara. Com o exílio tão almejado, a saudade. Não do horror, do terror, da humilhação, mas da terra, do solo que todos carregamos entranhados no sangue. Que venham outras experiências com os livros da Herta.
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