Tempo de Migrar Para o Norte (Tayeb Salih)

Tayeb Salih nasceu em uma pequena vila na região norte do Sudão. E, apesar de ter se formado em literatura pela Universidade de Cartum, na capital do Sudão, ele deixou o país em 1952 fazendo parte da primeira geração de sudaneses educados na Grã-Bretanha. Por sempre ter se mantido nessa transição entre seu país de origem e o que o acolheu, Tayeb manteve-se conectado às suas raízes orientais, ao mesmo tempo que ao carregar também o ocidente dentro de si, talvez nunca tenha se sentido plenamente em casa quando no seu país de origem. É essa dualidade que Tayeb traz para seu romance. A de um sudanês que se vê dividido entre diferentes costumes, raízes e modos de vida.

“No dia seguinte à minha chegada, acordei na mesma cama, no mesmo quarto cujas paredes haviam sido testemunhas da trivialidade da minha vida na infância e na adolescência. Entreguei meus ouvidos ao vento: é um som deveras conhecido por mim, que, em nossa terra, tem um alegre sussurro. O vento quando sopra entre as palmeiras é diferente daquele que passa pelos trigais. Ouvi o murmúrio da rola e, da janela, olhei para a palmeira do nosso quintal e constatei que a vida continua boa. Contemplando o tronco forte, as raízes fixadas na terra e a copa de folhas verdes, senti-me tranquilo. Não tenho mais a sensação de ser uma pessoa ao vento. Sou como aquela palmeira, uma criatura que tem origem, raiz e objetivo. ” (Página 6)

É assim que o narrador de Tempo de migrar para o norte quer nos mostrar sua felicidade por estar de volta ao Sudão despois de sete anos morando na Europa a estudos. Uma felicidade que acaba não se mostrando tão plena assim e que acaba sendo demonstrada por seu interesse excessivo em Mustafa Said. Um forasteiro que chegou à sua vila natal há cinco anos e se estabeleceu por lá. Um forasteiro que o narrador não demora muito a descobrir que fala inglês fluentemente o que a partir de então, o deixa bastante determinado em desvendar todos os segredos de Mustafa. Seria Mustafa outra alma dividida entre duas culturas assim como ele? Que segredos sórdidos ele estaria escondendo? O narrador tanto o faz que consegue que Mustafa lhe transforme em fiel depositário de sua história. Uma história de superação, de partida em direção ao norte em busca de um futuro melhor, da sedução pelo desconhecido habilmente empregada por Mustafa em seus relacionamentos, dos conflitos culturais e da ruptura interior que essa experiência provocou em Mustafa, eternamente condenado a jamais se sentir em casa, quer seja no exterior ou em seu país, e as ações extremas que isso acabou suscitando nele.

Essencialmente Tempo de migrar para o norte é um romance sobre imigração e Tayeb evidencia bem isso ao retratar o “choque” entre colonizados e colonizadores. O imigrante que parte para o norte em busca de uma vida melhor, longe do atraso provocado em seu país, fruto dos anos de explorações coloniais; e o “morador” do norte que agora se vê “invadido” e tendo de defender seu modo de vida e identidade. O que faz o romance flertar com as implicações do extremismo xenofóbico na psique humana. É um romance sobre partida, mas também sobre retorno. Um retorno que traz consigo uma mistura de sentimentos: conforto por retornar ao lar e inquietação por não se reconhecer mais entre velhos costumes. Em Mustafa os efeitos foram deletérios para ele e para as pessoas do seu convívio. O narrador vive tentando convencer a si mesmo que suas raízes são mais fortes e que, portanto, está imune ao fim derradeiro de Mustafa.

Um romance no qual o autor coloca em discussão o colonialismo e a política extremista europeia, a corrupção na política local e os políticos que só se lembram do povo no período eleitoral, além das práticas culturais extremas já tão perpetuadas na sociedade sudanesa. Tayeb não escolhe um lado. Ele escancara a problemática social de ambas as culturas. O foco é o migrante, é o cidadão sudanês obrigado a viver nessa disputa de forças. Por conter cenas sexuais, escancarar as práticas arcaicas fundamentadas na religião e nos costumes sudaneses e expor a politicagem de seu país natal para todo o mundo, o romance de Tayeb, publicado em 1966, foi durante muito tempo censurado em seu país. O que faz de Tempo de migrar para o norte um romance historicamente bastante emblemático. Findada a leitura o que posso dizer é que em alguns momentos a leitura fluiu, em outros arrastou, mas no geral foi uma ótima experiência de leitura que me permitiu conhecer um pouco mais sobre o Sudão.

Esta foi a minha primeira experiência com a TAG Experiências Literárias. Assinei o plano Curadoria no qual personalidades da literatura nacional e internacional são convidados para indicarem uma obra que pode ser um romance clássico ou contemporâneo, do Brasil ou do mundo. Junto com o livro (em capa dura e edição exclusiva), vem uma revista com conteúdo complementar e um mimo. Tempo de migrar para o norte foi a escolha de Milton Hatoum para o kit de maio.

Se você ainda não é assinante da TAG e se interessou pelo projeto, dê uma conferida no link. Neste mês o frete será gratuito para os novos assinantes. Ah, e a TAG liberou os nomes dos próximos curadores: em agosto Cristóvão Tezza será o curador. Setembro trará uma obra indicada pela Conceição Evaristo e em outubro Alejandro Zambra fará sua indicação.

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