Celeste Ng, em Pequenos incêndios por toda parte, mostrou-se exímia em fazer histórias de pessoas comuns renderem intricadas tramas e narrativas cativantes. Em colocar em discussão assuntos tabu e questões de representatividade com muita naturalidade, desprovida de julgamentos e sem ser determinística entre o certo e o errado. Em mostrar como as escolhas, os mal-entendidos, a falta de comunicação e os atos de desespero espalham pequenos incêndios por aí. Uma casa incendiada na cidade modelo de Shaker Heights (onde tudo tem seu lugar) marca o início dessa trama na qual as pequenas amostras do presente, passado e futuro nos mantém fisgados à espera do porvir.
Shaker Heights é uma cidade modelo, repleta de regras, com lugares pré-definidos para tudo e da qual seus moradores muito se orgulham. Principalmente a Sra. Richardson, que se apega aferradamente a quaisquer regras impostas pela administração da cidade. É sua casa que será incendiada, por sua filha caçula Izzy. Não, isso não é spoiler. Na verdade, é a primeira informação que Celeste nos fornece. A casa incendiada é um dos elementos derradeiros nessa história, mas para chegar até ele é preciso seguir as inúmeras informações e pistas que Celeste vai deixando pelo caminho. Ao entregar o fim, ela nos mostra que o meio (ou a jornada como você preferir chamar) na maioria das vezes é mais importante.
Tudo começa com a chegada de Mia Warren e Pearl, sua filha adolescente, à Shaker Heights. As novas inquilinas da Sra. Richardson não demoram a se tornar íntimas da família Richardson, especialmente Pearl, dos filhos do casal. Com a inclusão de duas estranhas no seio familiar, a dinâmica dos Richardson é evidenciada. O carinho da Sra. Richardson com os filhos mais velhos, a falta de paciência dela com Izzy. O fato de Izzy ser tratada pelos próprios irmãos como alguém perturbada e que precisa de tratamento. A necessidade de diálogo, de um ouvido amigo, que ela acaba por encontrar em Mia. É claro, que de sua parte, a Sra. Richardson também se torna uma observadora e avaliadora da vida levada por Mia, mãe solteira e artista de vida errante. E, talvez tudo tivesse permanecido apenas nessa avaliação mútua, no geral indolor. Mas, a adoção de uma bebê abandonada por um casal amigo dos Richardson, coloca Shaker Heights em polvorosa e Mia e a Sra. Richardson em rixa direta. Uma rixa que acaba por colocar a Sra. Richardson no rastro do passado de Mia e que no processo, deixará seu próprio lar em frangalhos.
“(…) o problema das regras, refletiu ele, era que subentendiam um jeito errado e um jeito certo de fazer as coisas, quando, na verdade, na maior parte do tempo havia apenas jeitos, sendo que nenhum deles era exatamente certo ou errado e nada podia indicar com certeza de que lado da linha você estava. Ele sempre admiraria o idealismo da esposa, sua crença de que o mundo podia se tornar melhor, mais organizado e talvez até perfeito. Pela primeira vez, ele se perguntou se tinha a mesma opinião. ” (Página 331)
A trama de Celeste tem vários núcleos e desdobramentos a serem explorados e a autora faz isso muito bem. É incrível acompanhar como cada peça dessa história vai se encaixando e tudo fica ainda melhor quando Celeste aproveita essa miscelânea de assuntos para colocar em discussão temas importantes. Ela discorre sobre a construção da identidade e representatividade, como a importância de se encontrar semelhantes em filmes, livros e bonecas…; sobre gravidez na adolescência e aborto; sobre as expectativas, por vezes demasiadas demais, dos pais e a carga emocional que elas acarretam aos filhos; sobre a importância do diálogo; sobre o processo de adoção e o tratamento diferenciado determinado pelo poder aquisitivo de seus pleiteantes; sobre como as regras podem ser injustas e favorecer apenas uma minoria. Temas tratados com maestria nessa narrativa viciante que te prende desde a primeira virada de página. E no final das contas, quando tudo termina em chamas, o impacto das escolhas e dos mal-entendidos angariados pelo caminho se torna ainda mais premente. Celeste Ng mostrou ser capaz de criar uma história de fôlego a partir do cotidiano de pessoas comuns. Algo que eu admiro em outra autora exímia nessa arte (estou falando da Liane Moriarty). Essa é uma característica que me fez colocar a Celeste na lista de autores para se ficar de olho. Agora, preciso ler o aclamado Tudo o que nunca contei.
Leia uma amostra aqui:
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