Ponciá Vicêncio (Conceição Evaristo)

“Veio-me à lembrança o doloroso processo de criação que enfrentei para contar a história de Ponciá. Às vezes, não poucas, o choro do personagem se confundia com o meu, no ato da escrita. Por isso, quando uma leitora ou um leitor vem me dizer do engasgo que sente, ao ler determinadas passagens do livro, apenas respondo que o engasgo é nosso. ” (Prefácio, Página 7)

Acompanhando as redes sociais literárias, o nome de Evaristo sempre surgia aqui e ali, mas com a campanha para sua indicação à Academia Brasileira de Letras, suas obras ficaram em destaque e a vontade de finalmente conhecer os escritos dessa autora mineira só aumentou. Ter conhecido a Maya Angelou por seu intermédio na curadoria da TAG Experiências Literárias, só aumentou a sensação de que as palavras de Evaristo ressoariam em mim. Foi assim com Ponciá Vicêncio, a primeira publicação solo da autora. Com um texto enxuto, mas com uma trama rica em apontamentos sociais, Evaristo nos traz a história de Ponciá, neta de escravos libertos, que cresceu nas terras do sinhô coronel de quem “herdou” até o sobrenome, e que parte para a cidade grande em busca de um futuro melhor.

A narrativa de Evaristo não é linear, ora estamos a ler sobre a infância de Ponciá, ora sua vida adulta e então, voltamos à sua adolescência. Como neta de escravos libertos, Ponciá cresceu sem muitas expectativas de crescimento, a vida de sua família ainda estava presa e tenderia a permanecer presa à vida do antigo senhor. E, ainda que a liberdade tenha sido concedida em algum momento, ela nunca foi concreta, sempre atracada às terras da casa grande. Ao crescer, Ponciá decidiu romper esses grilhões e arriscar-se na busca por um futuro melhor, mesmo que tantos outros antes dela tenham tentado a sorte na cidade grande e não tenha tido sorte alguma. Mas, como mulher negra, sem estudos, qualificações ou recomendações, Ponciá vê suas esperanças minguarem pouco a pouco. Com Ponciá, Evaristo escancara a falta de oportunidades, a escravidão moderna que nega a muitos a dignidade de ter um pouco para chamar de seu, de ter direito a sonhar, de se reinventar, de criar um futuro para si. É a desigualdade nua e crua escancarada, a falta de equidade já tão institucionalizada.

“Nas primeiras vezes que Ponciá Vicêncio sentiu o vazio na cabeça, quando voltou a si, ficou atordoada. O que tinha acontecido? Quanto tempo tinha ficado naquele estado? Tentou relembrar os fatos e não sabia como tudo se dera. Sabia, apenas, que de uma hora para outra, era como se um buraco abrisse em si própria, formando uma grande fenda, dentro e fora dela, um vácuo, com o qual ela se confundia. (…). No princípio, quando o vazio ameaçava encher a sua pessoa, ela ficava possuída pelo medo. Agora gostava da ausência, na qual ela se abrigava, desconhecendo-se, tornando-se alheia de seu próprio eu. ” (Página 40)

Quando Evaristo inclui na trama as ausências de Ponciá, todo esse alheamento nos deixa preocupados. O que há de errado com ela? Toda essa ausência é potencializada pelos desencontros e pela separação do que restou de sua família, sua mãe e seu irmão, que também têm espaço nessa narrativa. Os sentimentos escorrem pelas entrelinhas do texto de Evaristo. O acúmulo de perdas que Ponciá angariou desde a infância, as mazelas sociais que lhe negaram um presente digno e as esperanças de um futuro à mulher adulta, a “apatia” que a teia de desencontros no qual Ponciá se viu envolta, potencializou. Um romance de formação repleto de história, de costumes, de ritos, de sociologia e porque não, de política também. Não, não é Alzheimer precoce, não é depressão (ou talvez seja). O alheamento de Ponciá é resultado do alheamento da vida para com ela e outros tantos como ela. São as faltas de oportunidades, a negação de uma identidade própria, o acúmulo de perdas que só deixou para trás o vazio.

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