Para ser bem sincera fiquei mais cativada pelas palavras de João Anzanello Carrascoza, responsável pela curadoria da TAG Experiências Literárias em janeiro, do que por seu indicado, o autor espanhol Javier Cercas. Não é que a narrativa de Cercas deixe a desejar, muito pelo contrário já que seu texto é bastante fluido, mas é que já é de praxe Cercas transformar seus narradores em alteregos e a imagem que isso constrói em alguns momentos não é muito legal, sobretudo o machismo inerente do autor. Que sim, talvez seja espelho da época retratada no romance e per se, apesar de incômodo, é admissível. É por isso, que relevando isso, a narrativa de Cercas é envolvente e em A Velocidade da Luz ele traz para os holofotes uma narrativa sobre a literatura, ou melhor sobre como se produz literatura. Um prato cheio para qualquer amante dos livros.
A trama abarca mais de vinte anos e tem início nos anos 1980 quando o narrador, espanhol e aspirante a autor, desembarca para uma temporada em uma pequena cidade dos Estados Unidos. Ali, ele conhece Rodney Falk, um veterano da Guerra do Vietnã, com quem trava diálogos bastante eloquentes.
O romance está dividido em quatro partes. A primeira, “Todos os Caminhos” começa com o narrador instigado por um professor a se mudar para Urbana nos Estados Unidos para descobrir se realmente serve para a carreira de escritor. Ali, na universidade, ele conhece Rodney com quem começa a ensaiar uma amizade. Aliás, mais do que o narrador, é Rodney quem rouba a cena. É em suas conversas com o veterano que o narrador se torna mais palatável e nos brinda com ótimos diálogos sobre a literatura: autores favoritos, produção literária e os perigos que o sucesso representa para os escritores.
“– Se você soubesse de antemão, seria péssimo: só diria coisas que já sabe, que é o que todos sabemos. Se, ao contrário, você ainda não sabe o que quer dizer, mas está louco o bastante, ou desesperado, ou com coragem suficiente para continuar escrevendo, talvez acabe dizendo algo que nem mesmo você sabia e que só você poderia saber, e talvez isso tenha até algum interesse. (…) – O que eu quero dizer é que quem sempre sabe aonde vai nunca chega a lugar nenhum, e que a gente só sabe o que quer dizer quando isso já foi dito. ” (Página 53)
Mas, então Rodney desaparece, ninguém sabe para onde, e o narrador toma para si a tarefa de descobrir os porquês. Começa a segunda parte, “Listras e Estrelas” na qual o narrador vai desbastar o véu que encobre o passado de Rodney na Guerra do Vietnã. Aqui, Cercas tece críticas à guerra, ainda que de forma leve, e fornece um bom compêndio de autores que escreveram sobre o Vietnã e a guerra impetrada pelos Estados Unidos.
Quinze anos depois o ciclo se fecha. Em “Porta de Pedra” temos os frutos da carreira de escritor do narrador e um reencontro inesperado que o faz retornar à Urbana. Ali, em “A Álgebra dos Mortos” as pontas soltas e as dúvidas que ainda permeavam a obra são finalmente esclarecidas. Não sem Cercas nos reservar um final surpreendentemente perturbador.
A Velocidade da Luz surgiu como um expurgo da pressão que o seu romance de maior sucesso, Os Soldados de Salamina publicado em 2001, colocou sobre ele. E esse peso é espelhado nos diálogos entre o narrador e Rodney e no medo do narrador de não conseguir manter o sucesso alcançado. Cercas também imbuiu em seu narrador suas próprias experiências: a infância em Girona e os anos que passou nos EUA em busca de experiências para escrever romances. Cercas também passou por Urbana e também teve um parceiro que esteve na Guerra do Vietnã. É por esses e outros tantos fatos que A Velocidade da Luz quase se transforma em um romance autobiográfico sobre a formação de um escritor, mas com um bom espaço para abarcar um importante fato histórico de muitas implicações políticas e sociais. Gostei da minha experiência com Cercas, mas não vejo a hora de poder entrar em contato com os escritos do Carrascoza. Seu posfácio no romance e sua entrevista na revista da TAG são fascinantes.
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