“Ela ergue os olhos para ele e enxerga o vácuo onde deveria haver curiosidade. E algo mais. A total ausência de reconhecimento humano – a vitrificada separação. Não sabe o que mantém o olhar dele suspenso. Talvez o fato de ser adulto, ou homem, e ela uma menina. Mas ela já viu interesse, nojo, até raiva em olhos de homens adultos. Ainda assim, esse vácuo não é novidade para ela. Tem gume; em algum ponto na pálpebra inferior está a aversão. Ela a tem visto à espreita nos olhos de todos os brancos. Deve ser por ela a aversão, pela sua negritude. Mas sua negritude é estática e medonha. E é a negritude que explica, que cria o vácuo afiado pela aversão em olhos de brancos. ” (Página 58)
O Olho Mais Azul, publicado em 1970, é o primeiro romance escrito por Toni Morrison. Ela que começou uma carreira literária tardia, é autora de obras emblemáticas, nas quais a questão racial e o protagonismo negro sempre se fazem presentes. Não obstante, Morrison também foi a única mulher negra a ter recebido um Prêmio Nobel de Literatura (em 1993). O olho mais azul foi a obra escolhida pela Djamila Ribeiro para a TAG Experiências Literárias no mês de março. Aliás, escolha mais do que certeira já que infelizmente a autora faleceu pouco tempo depois. Foi muito bom conhecer um pouco mais sobre a autora e começar a enveredar por suas obras.
O romance que se passa em Lorain, Ohio, no início dos anos 1940, traz a história de Pecola Breedlove. Uma garota que carrega consigo um sentimento de incompletude, de não pertencimento, de negação por não se achar merecedora de nada por causa de sua aparência. Por ser negra e considerada feia nada lhe é cabível? Por ser negra e considerada feia está destinada a uma vida de sofrimentos e anulações? Esses sentimentos pungentes fizeram Pecola desejar ardentemente ter belos olhos azuis. Olhos que a “tornariam gente” perante os outros.
Como narradora, Morrison coloca Claudia MacTeer, uma garota de nove anos, moradora da casa na qual Pecola sempre se abrigava quando a situação ficava fora de controle em sua casa. Aos poucos entremeia-se na trama uma nova narradora, em terceira pessoa. É com ela que ficamos sabendo mais sobre as condições sociais da família Breedlove. A moradia parca, as relações familiares inexistentes, as constantes brigas que tornavam o ambiente ainda mais insuportável.
Pecola pode até ser considerada a protagonista do livro de Morrison, mas ela abre espaço para os outros personagens também. Permitindo-se uma licença temporal, ela narra pedaços da juventude de Pauline (mãe de Pecola) e da infância de Cholly (pai de Pecola). É aqui que ela empatiza os algozes, permitindo ao leitor percebê-los, antes de tudo, como vítimas do sistema (ainda que nada, nada, nada justifique a violência sofrida por Pecola). É a mãe que tem sua dor do parto minimizada perante as dores das mulheres brancas. É o pai abandonado pela mãe e renegado pelo pai. Sempre a certeza de serem menos, de valerem menos e de merecerem o sofrimento. Quem tanto apanha, aprende a bater e é assim que atitudes racistas acabam sendo repetidas por aqueles que as sofrem. É assim que atitudes tomadas para o mínimo status quo definido pelo tom da pele acaba gerando uma estratificação não só social, mas também comportamental.
Ao escolher Claudia e seu olhar infantil para nos trazer a história de Pecola, a narrativa de Morrison fica ainda mais pungente. A ingenuidade que não lhes permite entender a fundo as raízes do racismo e a rejeição por causa de sua aparência; a vulnerabilidade a que estão sujeitas ao não entenderem de que forma seus corpos podem ser devassados. O apoio familiar que Claudia e sua irmã Freeda têm, mas Pecola não, e todo o universo de diferença que isso representa. Com Claudia tendo voz e conseguindo questionar e Pecola encontrando sua voz interior apenas em um momento de alucinação, sendo emudecida e desacreditada ao longo de toda a narrativa. E por fim, condenada a uma desumanização produzida pelo racismo com raízes tão profundas.
Morrison evidencia como a percepção do conceito de beleza pode ser segregadora e como ela se torna uma força poderosa contra qual é praticamente impossível lutar. A história de O olho mais azul não é bela e o futuro reservado a Pecola não é dos melhores. Morrison escancara a maldade humana, a crueldade do racismo que segrega na base do ódio e que torna as vítimas repetidoras dessa onda de sentimento. Mostra como as crianças, as vítimas mais fracas desse sistema, são afetadas para o resto de suas vidas. Leitura mais do que necessária. É um “soco no estômago”, mas um que devemos nos permitir receber.
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