“- Nessa viagem (porque é preciso chamá-la de alguma maneira) nem tudo é bom e nem tudo é ruim. Por você e pelos outros, não a empreenda novamente. É uma bela memória e a memória é a vida. Não a destrua. ” (Página 46)
A narrativa de Bioy Casares concentra-se em três anos da vida de Emilio Gauna, um jovem mecânico que vive no subúrbio de Buenos Aires. Seguindo a sugestão de seu barbeiro, ele aposta em uma corrida de cavalos e ao sair vencedor, decide gastar a pequena fortuna com os amigos nos três dias do carnaval de 1927. Ao fim do período, o protagonista acorda em um embarcadouro, desnorteado e com a memória falha, mas com a certeza de que algo importante aconteceu na última noite de folia. Cinco curtos capítulos encerram toda a aventura de Gauna naquele carnaval, mas seus efeitos perduram por muito tempo…
Essa experiência modificou a imagem de Gauna perante os amigos, com estes se afastando paulatinamente dele. O barbeiro que te deu a grande dica do prêmio? Vendeu sua barbearia e foi embora. Todos tentando ostensivamente esconder algo que lhe escapa pelos fios da memória. Durante algum tempo, Gauna até tenta levar a vida. Ao pedir conselhos ao Bruxo Taboada, acaba se envolvendo com Clara, a filha do Bruxo. Um relacionamento que ocupa bastante espaço da trama de Bioy Casares e que nos deixa entrever todo o machismo da sociedade argentina do final dos anos 1920. O controle excessivo; a supressão da demonstração pública de sentimentos; a mulher vista como pertence, o que justificaria quaisquer atos retaliativos perante ações indesejáveis. É preciso um bocado de sangue frio e uma boa dose de compreensão para entender que se trata do retrato de tempos idos, e uma boa dose de persistência para atravessar esses trechos nem um pouco amigáveis.
Contudo, a obsessão por aqueles três dias de carnaval estava apenas adormecida e as dúvidas continuam a assolar Gauna. O que seus amigos sabem sobre aquela noite que não lhe contam? Quem era aquela mulher mascarada? Gauna se vê preso em uma voragem que cada vez mais exige que o seu passado seja devassado.
É com fidedignidade ao modo de vida argentino que Bioy Casares nos entrega um romance de costumes, e como já comentado ante, alguns atualmente não muito bem aceitos (ainda bem!). Mas, é na parte final dessa trama, quando o realismo valsa com o fantástico, que ele demonstra o quão bom pode ser em manter a atenção do leitor. No decorrer da leitura tinha certeza de que o final de Gauna e Clara não seria feliz, mas achei que a história enveredaria por outros caminhos. Era o que a trama de Bioy prometia, mas ele de forma surpreendente garantiu uma carga ainda mais dramática à conclusão do seu romance. Ao conferir ao destino quase um papel de protagonista nos eventos derradeiros, ele rompeu o véu entre a realidade e o fantástico e conduziu a busca incessante de Gauna a um fim magistral.
Este foi o livro que escolhi para representar a Argentina no Projeto Volta ao Mundo em 198 Livros.
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