Muito Longe de Casa (Ishmael Beah)

““Quantas vezes mais vamos ter que enfrentar a morte até encontrar segurança?”, perguntou.

Ele esperou alguns minutos, mas nós três não dissemos nada. Ele continuou: “Toda vez que somos perseguidos por gente que quer nos matar, fecho os olhos e espero pela morte. Apesar de ainda estar vivo, sinto como se, a cada vez que aceito a morte, parte de mim morresse. Muito em breve eu vou morrer completamente e tudo que sobrar de mim será meu corpo vazio, andando com vocês. Ele será mais silencioso do que eu. ”” (Página 79)

Ishmael Beah, serra-leonense, até os dez anos de idade só tinha tido contato com a guerra pelos filmes e notícias de jornais. Aos 12 anos, a guerra o alcançou pela primeira vez. Em Muito Longe de Casa, Ishmael compartilha um bom pedaço (quiçá o mais impactante dele) de sua experiência como menino-soldado. Em um texto conciso e fluído, mas de “difícil” leitura pela crueza da verdade que encerra, Ishmael relembra como teve sua infância extirpada; como se perdeu dos pais em meio ao caos instaurado pelos ataques, e a vida em constante fuga na qual acabou portando fuzis AK-47; e, como quando achou que a guerra havia ficado para trás, ela adentrou na sua vida novamente.

Serra Leoa começou como um aglomerado de tribos africanas, espalhadas por um território que primeiramente começou a ser explorado pelos portugueses estabelecendo-se um comércio de escravos bastante lucrativo. Até que abolicionistas britânicos começaram a lutar pela alforria de escravos, de várias etnias e tribos, que se estabeleceram em Freetown (atual capital de Serra Leoa). Serra Leoa se torna colônia britânica. De um passado de exploração, passando por uma nova colonização mascarada de acesso à liberdade, Serra Leoa conquistou sua independência a duras penas e ela foi seguida por revoltas, golpes de estado, corrupção desenfreada e um crescimento do governo absolutista. É nesse contexto de um conflito armado iminente que Ishmael nasceu. Em 1991 a guerra civil explode. Em 1993 ela atinge a aldeia que Ishmael e seu irmão mais velho estavam visitando. Os sinais claros da guerra eram desesperadores, ainda mais para dois garotos que se viram impedidos de retornar e ir atrás de seus familiares.

Escrito para ser um repositório de memórias, a linha cronológica em Muito Longe de Casa não é linear. Depois que Ishmael é confrontado com a guerra, ele nos narra sua experiência em flashes: do período que se transformou em fugitivo, quando se tornou menino-soldado, quando foi resgatado por forças humanitárias, o longo período de reabilitação, o surgimento da esperança por um futuro melhor, as desilusões e as ações desesperadoras que elas incitaram. Nesse exercício de puxar pela memória, somos esmagados pela crueldade de um conflito armado no qual não houveram lados certo e errado bem definidos, mas que garantiu um alvo nas costas de cada serra-leonense, de bebês a idosos.

Ao acompanhar a jornada de Ishmael, estamos tendo uma amostra do que inúmeras crianças e adolescentes estiveram sujeitas durante a vigência do conflito. Vistos como mãos de obra, foram cooptados pelos dois lados. Transformados em agentes de matança, passaram a representar o terror e mesmo os garotos que se mantiveram a margem das forças militares passaram a ser vistos com medo por seus conterrâneos não encontrando porto seguro em lugar nenhum. Quando você lembra que se tratavam de crianças que foram extirpadas de sua infância, que se perderam dos pais, irmãos e avós, que presenciaram a morte de familiares e que desde então viveram a fugir de uma guerra que permaneceu no encalço, essa dificuldade extra adicionada pelo medo deixa tudo ainda mais desesperador.

De menino-soldado, Ishmael passou por um processo de reabilitação e reinserção social, se tornou porta-voz das crianças-soldados em processo de reabilitação, discursou na ONU e finalmente estabeleceu-se nos Estados Unidos. Mas o processo foi longo e doloroso. E sua resiliência e capacidade de acreditar foram testadas a cada passo. Não comece a leitura de Muito Longe de Casa esperando detalhes do conflito armado (além dos presenciados por Ishmael) ou das nuances políticas da guerra em Serra Leoa. O que Ishmael faz é rememorar a tragédia que matou sua família e amigos, destruiu sua infância e o transformou em soldado. É o impacto do fato histórico no cotidiano. Uma leitura realmente impactante.

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