CONTÁGIO – Infecções de origem animal e a evolução das pandemias (David Quammen)

“Invadimos florestas tropicais e outras paisagens selvagens, que abrigam tantas espécies de animais e plantas – e dentro dessas criaturas, tantos vírus desconhecidos. Cortamos as árvores; matamos os animais ou os engaiolamos e os enviamos aos mercados. Destruímos os ecossistemas e liberamos os vírus de seus hospedeiros naturais. Quando isso acontece, eles precisam de um novo hospedeiro. Muitas vezes, somos nós. ” (e-book, posição 81-84)

Apesar de ter sido publicado originalmente em 2012, o livro de David Quammen não poderia ser mais atual. A Companhia das Letras tê-lo trazido neste momento para o mercado brasileiro não poderia ser mais emblemático. Com a pandemia de covid-19 ainda longe de acabar, entender como as doenças zoonóticas podem se tornar pandemias e como se dá o processo de erradicação ou controle de doenças (principalmente com os movimentos antivacinas em alta) é fundamental para que hábitos e costumes perigosos sejam mudados e para que tenhamos embasamento científico para lutar por políticas públicas, principalmente ambientais e de saúde, para que situações como a que vivenciamos hoje não se repitam ou cheguem em uma onda ainda mais dizimatória.

Hendra, Ebola, Malária, SARS-CoV, Febre Q, Psitacose, Doença de Lyme, Marburg e HIV são algumas das doenças (a maioria provocada por vírus, algumas por bactérias) de origem zoonóticas que Quammen aborda em Contágio. Ele revisita os casos dessas epidemias, evidencia a importância das investigações epidemiológicas e das medidas públicas de contenção quando uma doença está em curso e acompanha pesquisadores que dedicam-se a descobrir a origem dessas doenças, seus mecanismos de infecção e como elas “atravessaram a ponte” entre o restante dos animais e os humanos.

É essa “ponte” denominada de Spillover, que também é o título original da obra, que serve de mote para a obra de Quammen. Spillover pode ser traduzido como transbordamento e é um conceito na ecologia para dizer que um vírus ou um micróbio conseguiu se adaptar e migrar de uma espécie de hospedeiro para outro. Isso pode acontecer quando um humano mata, esquarteja e come um indivíduo infectado de uma espécie de grande primata; devido à práticas culinárias peculiares aliadas à falta de fiscalização sanitária e boas práticas de acondicionamento nos, agora mais conhecidos, mercados úmidos; pela perda de hábitat ocasionada pelos desmatamentos e queimadas, que rompe o equilíbrio mantido pela diversidade biológica, gerando oportunidades para que micro-organismos até então contidos se aproximem ainda mais dos humanos e das cidades; por expedições exploratórias de ecoturismo sem o devido treinamento por parte dos guias e pela ausência de equipamentos de proteção que deveriam ser obrigatórios, uma visita sem preparação prévia a uma isolada caverna na África pode render além das lembranças de aventura, uma doença potencialmente mortal.

Mesmo o desenvolvimento da ciência e as práticas arcaicas da medicina tiveram sua parcela de contribuição na disseminação de zoonoses. Por exemplo, grandes surtos de Hepatite B em humanos, estão fortemente associados a pesquisas laboratoriais que tinham como foco a poliomielite e o HIV e utilizavam como cobaias macacos rhesus frequentemente contaminados pelo vírus. O HIV, apesar de ser uma zoonose, um dos spillovers (no plural porque é provável que tenham sido vários episódios) mais bem-sucedidos da história, também teve contribuição humana para a sua disseminação (na verdade continua tendo, mas não estamos falando de comportamento de risco aqui). A doença que tem origem geográfica na Região Central da África, primariamente foi disseminada pela utilização de seringas hipodérmicas não descartáveis em campanhas de vacinação, foi potencializada por campanhas governamentais de recebimento de imigrantes haitianos que posteriormente foram expulsos para seu país de origem (vários já contaminados) e provavelmente atingiu seu auge de espalhamento pela utilização de máquinas de plasmaferese e vendas de plasma que eram exportados para os EUA e tantos outros países, inclusive o Brasil. Naquela época, final da década de 1960, sangue e hemoderivados não eram testados como hoje, muito menos para o HIV, um vírus ainda desconhecido.

“(…) as pressões e perturbações ecológicas causadas pelo ser humano estão pondo patógenos animais cada vez mais em contato com populações humanas, enquanto nossa tecnologia e nossos comportamentos propagam esses patógenos de modo cada vez abrangente e veloz. ” (e-book, posição 598-601)

Quammen segue fazendo seu excelente trabalho de historiografia científica, recontando fatos do desenvolvimento do conhecimento cientifico de maneira bastante envolvente e com conceitos bem esmiuçados. É possível aprender um pouco sobre como as investigações epidemiológicas são feitas e quais informações são importantes; ter uma noção, no caso de uma pandemia em curso, de toda a loucura para se conseguir suprimentos médicos e a pressão orçamentária provocada pelo livre mercado; e, por se tratar de vidas perdidas, é uma leitura dolorosa também.

Sei que esse é um livro que muitos podem não se animar a ler, por não ter o costume de ler esse tipo de obra; ou, pela exposição massiva aos números da pandemia de covid-19 em nosso país, ainda desesperadores, que não contribuem para tornar esta leitura fácil. Mas, se tiver a oportunidade, não deixe de lê-lo. Nesses tempos em que estamos mergulhados em fake news e achismos, um texto lúcido, informativo e crítico, é um respiro mais do que necessário.

Um adendo, um spillover também pode ocorrer no sentido inverso, a nossa maior aproximação dos refúgios da vida silvestre também pode colocar os outros animais em contato com doenças tipicamente humanas. Pontes podem ser atravessadas, gorilas, chimpanzés e outras espécies podem ser infectadas por aquilo que chamamos de antroponoses.

 

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Arquivado em Companhia das Letras, Editoras Parceiras, Resenhas da Núbia

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