
“Quanto tempo é preciso para a gente ser a gente mesmo? E eu gostaria de perguntar isso a todos os que não precisam trocar de sexo. Quantos anos, décadas, para estar em conformidade? Conformidade de corpo, conformidade de sonhos, conformidade de pensamentos, com aquilo que somos profundamente, esta matéria bruta da qual sobram uns poucos restos antes que ela seja forjada, alisada, remendada pela sociedade, pelos outros e seus olhares, nossas ilusões e nossas feridas.” (Página 75).
A trama de Ponto Cardeal tem início com Mathilda se despindo e dando lugar à Laurent e sua vida baseada na negação dos seus anseios mais secretos. É assim que Récondo nos apresenta seu/sua protagonista, com seu sentimento permanente de inconformidade, sua experiência com a travestilidade e seu processo em direção à transexualidade.
A trama de Récondo recai na batalha Laurent versus Mathilda. A liberdade agridoce representada por Mathilda, as conquistas familiares obtidas por Laurent. A disputa interna que lança os primeiros tentáculos sobre a vida familiar tão fortemente protegida por Laurent. O longo processo que as escolhas do marido induzem em Solange, da negação à busca determinada por uma “cura”, da aceitação reticente à impávida parceria para a concretização dos anseios dele. A história poderia focar-se apenas no ponto de vista de Laurent/Mathilda e tudo bem, a carga dramática já seria imensa, mas Récondo vai além e coloca na mistura a carga dramática enfrentada por Solange e pelos filhos adolescentes de Laurent, Thomas e Claire. Não é só Laurent que está mudando, tudo está mudando ao seu redor e a forma como essas mudanças atingem os de seu convívio é emblemática. Eu como leitora cisgênero talvez não perceba pormenores problemáticos na narrativa de Récondo, ainda assim percebo os perigos de cair nos estereótipos ao alinhar a transexualidade a uma redesignação sexual obrigatória ignorando toda uma diversidade de vivências transexuais no processo. Tendo em mente a minha incapacidade de perceber outros detalhes desabonadores, é preciso enfatizar a importância da obra que traz uma visibilidade para um tema ainda pouco abordado rotineiramente com uma narrativa leve, fluida e que prende o leitor.
Para quem nunca ou pouco teve contato com o tema abordado, o romance é uma boa porta de entrada para a questão da transição, mas antes de tudo, é uma grande lição de empatia. Se colocar na pele do outro, quando nem ele está conformado com ela é se permitir entender o anseio pela mudança, pela busca da identidade, por aquela sensação de completude que o alinhamento entre as imagens interior e exterior pode vir a proporcionar.
*Ponto Cardeal foi o livro enviado pela TAG Curadoria em Abril de 2020. O curador foi o psiquiatra e psicanalista italiano radicado no Brasil, Contardo Calligaris (in memoriam).
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