Arquivo da categoria: Leia Mulheres

Quarto de Despejo (Carolina Maria de Jesus)

“Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.”

 (página 37)

Se você é leitor, acompanha perfis literários ou mesmo nos estudos de literatura na escola, é bem provável que já tenha ouvido falar em Carolina Maria de Jesus. Mulher preta, favelada, catadora de papel e sem estudo formal que encontrou na expressão das palavras, pousadas nas folhas usadas nos cadernos achados em sua lida diária, a força para enfrentar os percalços e a triste realidade daqueles a quem todo o restante da sociedade quer tornar mais invisíveis do que já são.

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Sanga Menor (Cíntia Lacroix)

“Sanga Menor era uma cidade em forma de ladeira. Uma ladeira suave na descrição de alguns que tomavam por parâmetro, decerto, um precipício. Uma ladeira íngreme na opinião de outros que talvez a comparassem à linha do horizonte.

(…)

A rua principal estendia-se desde o ponto mais alto da cidade, onde estavam a igreja, o clube e a prefeitura, até o ponto mais baixo, onde dormia a sanga, no seu leito escuro e quieto. ”

 (página 23)

Desde a primeira vez que me deparei com o título da obra de Cíntia Lacroix, senti que precisava lê-lo. Isso foi lá em 2009, quando o romance contava com outra capa. Mais de uma década e uma nova edição depois finalmente pude me enveredar pelas ruas de Sanga Menor (que nem são muitas) e pela história de sua gente. Uma cidade cercada por mistérios e lendas que recheiam a história com ares de um realismo fantástico que nada fica a dever aos grandes nomes do gênero.

Como quem não quer nada, Lacroix nos convida a conhecer a história do cordato e acomodado Lírio Caramunhoz, da protetora Rosaura, da cansada Margô, do criativo Gilberto e da contestadora Caetana dentre tantos outros sanga-menorenses. A trama tem início com Lírio, criado a pão-de-ló pela mãe (para o desassossego de Margô), um cuidado excessivo que vem desde quando ainda estava na barriga, decorrente da ausência do pai e esteio da família que sobrevive em estado vegetativo após um derrame. É o constante medo de Rosaura que a fez e faz tratar seu único filho assim, mas longe de protegê-lo tal fato serviu para colocar um alvo em seu corpo, para todas as chacotas que os sanga-menorenses pudessem inventar. É fácil o leitor se colocar ao lado de Margô e taxar Lírio de aproveitador, mas quando você percebe que ele não é alienado de sua condição e até mesmo se martiriza por ela, é impossível não se pegar torcendo para ele conseguir romper as amarras e finalmente viver sua vida. Continuar lendo

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Mal-entendido em Moscou (Simone de Beauvoir)

Apesar de muito já ter ouvido falar de Simone de Beauvoir e sua contribuição para a teoria feminista além do seu ativismo político, ainda não havia lido nenhum escrito dela. Decidi começar pelo curtíssimo Mal-entendido em Moscou, uma novela na qual Beauvoir mescla fatos biográficos e fictícios em um belo exemplo de romance de autoficção.

A história, escrita nos fins da década de 60 e publicada em 1992, traz como protagonistas Nicole e André, casados, na casa dos sessenta, em uma vista à União Soviética. O casal, que mora em Paris, viajou até a URSS para visitar Macha, filha do primeiro casamento de André, que acompanha ambos em uma route tour pelo país. Mas, mais do que um diário de viagem, Beauvoir traz os dissabores e o desassossego que permeiam a vida do casal. A narrativa alterna-se entre Nicole e André. Altercações curtas em que muito nos é mostrado em pensamentos e poucos são os apontamentos que são verbalizados entre os personagens. Beauvoir nos torna assim observadores oniscientes enquanto seus personagens permanecem ilhados em suas interpretações e reminiscências. Continuar lendo

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Leia Mulheres: O Dia da Mulher e a Literatura

Apesar do blog existir há 10 anos (!) e minha vida como leitora superar em anos (e muitos) essa marca, foi apenas em 2017 que passei a me preocupar com as escolhas de leituras que fazia. Deixei de pensar apenas nos títulos e pegar obras aleatoriamente na estante para ler e pensar no social e na cadeia de produção e divulgação literária por trás das obras que chegavam até o grande público. Projetos como o #readwomen2014, traduzido para #leiamulheres no Brasil me fizeram enxergar toda a problemática historicamente enfrentada pelas mulheres que ousaram se aventurar no mundo dos livros, durante muitos anos elas pouco foram incentivadas e foram até mesmo proibidas de perseguirem carreiras literárias. Pouca visibilidade editorial, a grande disparidade de espaço de mercado ocupado por ambos os sexos, a prática repressora de fazerem autoras utilizarem pseudônimos masculinos ou as iniciais para serem publicadas. Uma blindagem perante os olhos do público que só fez aumentar a visão distorcida de que a literatura escrita por homens é melhor. Continuar lendo

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Úrsula e Outras Obras (Maria Firmina dos Reis)

“Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a teu próximo como a ti mesmo –, e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante! …. Àquele que também era livre no seu país…. Àquele que é seu irmão? ” (eBook)

Maria Firmina dos Reis, maranhense, mulher negra e a frente do seu tempo, publicou Úrsula em 1859. Esta obra que é considerada como sendo o primeiro romance abolicionista escrito por uma mulher, compõe junto com A Escrava (um conto abolicionista), Gupeva (um conto indigenista) e Cantos à beira-mar (reunião de poesias) o 11° volume da série Prazer de Ler da Edições Câmara.

No prólogo da primeira publicação (e incluída nesta) de Úrsula, Maria Firmina pede desculpas por estar publicando um livro de pouca formosura, pede para que ele seja aceito e que essa aceitação sirva de incentivo para ela e para outras autoras mais acanhadas que ela. É realmente muito triste que sua obra tenha permanecido desconhecida durante muito tempo. Mesmo que Úrsula e Gupeva sejam carregados de um tom dramático exacerbado e que o texto precisasse de um tratamento editorial de forma a deixar a narrativa mais concatenada, o tom da obra de Maria Firmina ressoou como obra de resistência no contexto do século XIX nos longínquos rincões maranhenses. Continuar lendo

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Balanço Literário: Desafios e Projetos Literários

Sei que já fiz um post de retrospectiva literária, mas o foco deste aqui é ser mais específico acerca dos desafios literários que me propus a participar e, sobre o andamento do Projeto Literário Volta ao Mundo em 198 Livros.

No ano passado decidi participar de três desafios literários: o Desafio Livrada!, o Desafio Viaggiando e o Desafio #LendoMaisMulheres2019 – edição especial autoras negras. Para este último acabei não postando uma lista de prováveis leituras aqui no blog, como fiz para os outros dois. Aliás, se vocês quiserem ver como ficou a lista final dos meus desafios, cliquem nos links aí em cima. Novamente eu flopei em todos e agora vocês podem estar se perguntando o porquê de eu continuar participando de Desafios se nunca consigo cumpri-los. Bem, como escrevi por aqui em uma postagem no ano passado, participar de desafios literários tem contribuído para ampliar meu horizonte de leituras me levando a cogitar a leitura, e em vários casos ler, obras que de outra forma talvez não lesse. Eles também me fazem olhar com outros olhos para minha estante e finalmente colocar como meta aquele livro que não via a hora de comprar, mas que acabou sendo esquecido pouco depois. Continuar lendo

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Sejamos Todos Feministas (Chimamanda Ngozi Adichie)

“O problema da questão de gênero é que ela prescreve como devemos ser em vez de reconhecer como somos. Seríamos bem mais felizes, mais livres para sermos quem realmente somos, se não tivéssemos o peso das expectativas do gênero. ” (e-book)

Influenciada pelo tom feminista da história de Charlotte Perkins Gilman, decidi finalmente conferir o pequeno livro, mas imenso em informações e discussões, da Chimamanda Ngozi Adichie, Sejamos Todos Feministas. Publicado pela Companhia das Letras aqui no Brasil, tem uma versão física e outra em e-book, esta última fornecida gratuitamente pela editora.

A obra é uma versão modificada de uma palestra que Chimamanda deu em dezembro de 2012 no TEDxEuston, uma conferência com foco na África. Chimamanda compartilha suas experiências de infância na Nigéria (mas que poderia ser em qualquer outro país) moldadas pelo machismo, que podam as ambições das meninas e acabam sendo tidas como normais. O que se torna normal acaba imperceptível e é aí que todos param de enxergar o quanto essas diferenças impactam a vida de meninas, garotas e mulheres. Usando seu país como exemplo, ela nos mostra como a mulher é colocada constantemente em segundo plano e o quanto de liberdade lhe é tolhida enquanto os homens têm passe livre para ir e vir. Com bons argumentos ela mostra o quanto isso é potencializado pelo direcionamento da criação das meninas em prol dos meninos. Uma criação que ensina às meninas que elas devem se preocupar com o que os meninos pensam delas, e aos meninos que eles devem crescer como homens duros e fortes. Como resultado temos homens com egos frágeis e mulheres que acreditam ser sua responsabilidade protegerem esse ego. Não se permitir alcançar todo seu potencial para não ameaçar aos homens é só mais uma consequência desastrosa dessa educação há tanto tempo internalizada. Continuar lendo

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Terra das Mulheres (Charlotte Perkins Gilman)

Terra das Mulheres de Charlotte Perkins Gilman foi publicado em 1915 e não há dúvidas de que a autora foi muito corajosa em colocar em evidência uma sociedade composta apenas por mulheres e aproveitar para trazer à tona discussões sobre maternidade, condições salariais, educação, estupro marital e o machismo arraigado no dia-a-dia. Mas, o romance que inspirou o criador da Mulher-Maravilha tem as suas limitações e começar a leitura já sabendo algumas, por causa do ótimo prefácio da Renata Corrêa, coloca as expectativas em banho-maria e nos permite (salvo as escorregadelas, em sua maioria, reflexos do período em que o romance foi escrito) aproveitar muito mais a história de Gilman.

A narrativa é feita em primeira pessoa, por Vandyck, um explorador. Sim, é um romance escrito por uma mulher, com uma história considerada feminista, mas narrada por alguém do gênero oposto. E não, isso não é um dos pontos negativos da história já que é facilmente perceptível as intenções da autora: provocar estranheza e abalar as estruturas daqueles que naturalizaram-se como gênero superior. Colocar em evidência um país composto apenas por mulheres, baseado na racionalidade e aparentemente assexuado, no qual os bebês nascem por geração espontânea propiciada pelo desejo de ser mãe, põe em xeque tudo o que Vandyck e seus companheiros de viagem, Terry e Jeff, entendem por civilidade, organização social e política e a superioridade masculina tão apregoada pelo machismo. Isso fica ainda mais evidente pelo fato deles, antes de alcançarem a Terra das Mulheres, ressoarem toda essa “superioridade” na descrença perante o sexo oposto. Não conseguindo atribuir papeis de importância para as mulheres, tampouco aceitando a existência de um país civilizado na ausência de homens. Continuar lendo

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Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis (Jarid Arraes)

“Esquecidas da História

As mulheres inda estão

Sendo negras, só piora

Esse quadro de exclusão

Sobre elas não se grava

Nem se faz uma menção. ” (Página 97)

A autora nordestina Jarid Arraes tem se dedicado já há alguns anos em desvendar a história das mulheres negras que tiveram papéis importantes (mas que passaram despercebidos) na História do Brasil. Mas, mais do que conhecer, Jarid queria espalhar aos quatro ventos as histórias dessas mulheres. Vinda de uma família de cordelistas, foi natural que ela escolhesse o cordel como veículo para sua empreitada. Jarid escreveu muitos e muitos cordéis, destes, 15 foram reunidos no livro Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis publicado pela Editora Pólen. Continuar lendo

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O Olho Mais Azul (Toni Morrison)

“Ela ergue os olhos para ele e enxerga o vácuo onde deveria haver curiosidade. E algo mais. A total ausência de reconhecimento humano – a vitrificada separação. Não sabe o que mantém o olhar dele suspenso. Talvez o fato de ser adulto, ou homem, e ela uma menina. Mas ela já viu interesse, nojo, até raiva em olhos de homens adultos. Ainda assim, esse vácuo não é novidade para ela. Tem gume; em algum ponto na pálpebra inferior está a aversão. Ela a tem visto à espreita nos olhos de todos os brancos. Deve ser por ela a aversão, pela sua negritude. Mas sua negritude é estática e medonha. E é a negritude que explica, que cria o vácuo afiado pela aversão em olhos de brancos. ” (Página 58)

O Olho Mais Azul, publicado em 1970, é o primeiro romance escrito por Toni Morrison. Ela que começou uma carreira literária tardia, é autora de obras emblemáticas, nas quais a questão racial e o protagonismo negro sempre se fazem presentes. Não obstante, Morrison também foi a única mulher negra a ter recebido um Prêmio Nobel de Literatura (em 1993). O olho mais azul foi a obra escolhida pela Djamila Ribeiro para a TAG Experiências Literárias no mês de março. Aliás, escolha mais do que certeira já que infelizmente a autora faleceu pouco tempo depois. Foi muito bom conhecer um pouco mais sobre a autora e começar a enveredar por suas obras.

O romance que se passa em Lorain, Ohio, no início dos anos 1940, traz a história de Pecola Breedlove. Uma garota que carrega consigo um sentimento de incompletude, de não pertencimento, de negação por não se achar merecedora de nada por causa de sua aparência. Por ser negra e considerada feia nada lhe é cabível? Por ser negra e considerada feia está destinada a uma vida de sofrimentos e anulações? Esses sentimentos pungentes fizeram Pecola desejar ardentemente ter belos olhos azuis. Olhos que a “tornariam gente” perante os outros. Continuar lendo

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