Autobiografia, do escritor português José Luís Peixoto, foi enviado em julho de 2019 pela TAG Curadoria. Um livro ainda não publicado, um romance dentro de um romance – o que chamamos de metaliteratura, para comemorar o aniversário de cinco anos do clube de leitura. Quando os assinantes começaram a receber as suas caixinhas e a ler o livro, criou-se um burburinho em torno da obra, não necessariamente dos bons. Ainda hoje é considerada uma obra controversa, muitos até mesmo tendo abandonado a leitura. Então, foi sem expectativas que peguei Autobiografia para ler e até mesmo com um pouco de receio, já que a trama faz uma homenagem à José Saramago e por só ter lido um livro do mesmo, achei que talvez não captasse todas as nuances da narrativa e as conversas da obra de Peixoto com as de Saramago. Talvez realmente não tenha captado (e a revista da TAG ajudou muito nessa leitura), mas ei, o que posso dizer é que foi uma leitura envolvente e surpreendente e com uma grande carga filosófica.
A trama toda se passa em pouco mais de um ano, entre 1997 e 1998. José é um jovem escritor às voltas com a tarefa de escrever um segundo romance, de mostrar para si mesmo e para os outros não ser escritor de um livro só. Enleado em sua busca pessoal, recebe um pedido do editor, queria lhe encomendar uma biografia de Saramago. José acaba aceitando o trabalho e o projeto o coloca em constantes encontros com o outro José, o Saramago. Que parece nutrir um interesse especial pelo protagonista. A partir daí, em meio a tramas circulares, timelines não lineares e narrativas partilhadas, Peixoto mescla a realidade e ficção e dá vida a uma história imagética e rica em possibilidades.
“Se aceito a ligação entre o futuro e o passado, como posso negar a ligação entre o passado e o futuro? Ao recordar o passado, o futuro esquece muitos detalhes fundamentais, constrói uma imagem imprecisa e, através dela, acredita conhecer o passado. Mas isso é exatamente o que o passado faz, constrói uma imagem imprecisa e, através dela, acredita imaginar o futuro. ” (Página 89)
Há todo um mistério envolvendo José e Saramago, um não muito difícil de captar nas entrelinhas e paradoxal por natureza, algo de que Peixoto sabiamente soube se precaver. Mas, mais importante do que o mistério em si, é como ele é trabalhado ao longo da narrativa. Porque mais do que o relacionamento de Josés, essa é uma história sobre a literatura e sobre como escritores se relacionam com ela. A visão de José, a visão de Saramago, a oportunidade de lermos os cadernos de José e acompanharmos a construção de um livro, o descortinar de histórias dentro de histórias com direito a personagens descobrindo-se personagens e questionando as escolhas do autor. Nessa mistura antológica, personagens reais se tornam personagens fictícios e personagens fictícios do panteão de personagens saramaguianos se tornam quase reais.
Quem não é muito fã de tramas circulares, daquelas que você quase se perde no tempo, e de romances com timelines mescladas, certamente terá alguma dificuldade com Autobiografia. Mas, se jogue, se aventure por Portugal e antigas possessões portuguesas, procrastine com José, aventure-se por seu romance de cariz biográfico, contrarie as leis elementares da física, espaço e tempo. Viva a literatura. Presencie uma chuva de livros e se encante pela escrita de José Luís Peixoto. De José para José, acho que Autobiografia é uma bela homenagem de Peixoto para Saramago.
*Autobiografia foi o livro enviado pela TAG Curadoria em julho de 2019. Não houve curadoria externa por se tratar do mês de aniversário da TAG.