Esta é mais uma daquelas leituras que foram fomentadas por um desafio literário, no caso o Desafio Lendo Mais Mulheres 2018. Nele há a categoria ler um livro de uma autora sul-americana e eu não pude deixar passar a oportunidade de colocar o único livro da Rachel de Queiroz que tenho na minha estante. Não é que eu nunca tenha ouvido falar da Rachel de Queiroz, mas ela não fulgurava entre os autores que li no ensino médio. Não comecei pelo O Quinze nem Memorial de Maria Moura (duas de suas obras mais emblemáticas), mas Dôra, Doralina cumpriu seu papel de me apresentar uma escritora de narrativa afiada, muito ligada às suas raízes nordestinas e sempre preocupada com a situação política do país.
Dôra, Doralina foi publicado originalmente em 1975 e traz a história de uma protagonista que vive em uma fazenda no agreste nordestino sob o jugo da mãe, passando por seu grito de liberdade, seu envolvimento com uma trupe de teatro mambembe, seu desembarque no Rio de Janeiro em tempos de guerra e a descoberta do amor. Apesar de não acompanharmos Dôra desde sua infância, este é essencialmente um romance de formação e para refletir as diferentes fases pelas quais Dôra transita, Rachel estruturou a obra em três livros.
O primeiro é O Livro da Senhora. Nele encontramos Maria das Dores, a Dôra, na Fazenda Soledade, na qual ela mora sob o domínio da mãe, uma viúva que faz por merecer a alcunha de Senhora que lhe é atribuída. Muitos personagens são apresentados nesta parte, muitas reminiscências de Dôra são intercaladas de forma não linear na narrativa principal, mas a importância disso tudo é evidenciar o poderio de Senhora sobre toda a gente da Soledade, a relação estremecida entre mãe e filha, praticamente inexistente, e o quanto Dôra ainda se encontra maleável aos desígnios da mãe. Não é à toa que aos 22 anos se viu casada com Laurindo, morando sob o teto materno, ainda que metade dele lhe pertença por herança, e presa em um casamento que nada lhe traz de felicidade. Mas, eis que a tragédia essa amiga indesejada acaba com o casamento de Dôra, que então, decida se livrar do jugo da mãe e partir de Soledade.
“Pois agora eu me considerava assim como a raposa: se deixei minha carne sangrando na Soledade, também me livrei. Queria não pensar em nada, nada daquilo passado, nunca mais. Doía ainda, como doía de noite! Eu chegava quase a meter os pés da cama e sair gritando – doía, mas tinha que sarar. E ia sarando aos bocadinhos, às vezes eu já passava um dia inteiro sem me lembrar de nada. ” (Página 110)
Em Fortaleza, inicia-se o Livro da Companhia. Livre, Dôra se permitiu vivenciar experiências (como bailes e teatros) que Senhora sempre lhe negou. Ali, ela entra para uma companhia de teatro mambembe, ganha um nome de palco e cai na estrada em uma turnê com destino final no Rio de Janeiro. Essa viagem não é só literal, é também uma jornada de autoconhecimento para Dôra. Sua declaração de independência, sua mudança de visão de mundo que agora lhe permite se sentir dona de si mesma e a descoberta do amor.
“Bem, nisso tudo o que eu quero dizer é que antes de eu entrar na Companhia, tinha o meu corpo como se fosse uma coisa alheia que eu guardasse depositada, e só podia dar ao legítimo dono, e depois de dar a esse dono era só dele, não adiantava eu querer ou não, porque o meu corpo eu não tinha o direito de governar, eu vivia dentro dele mas o corpo não era meu.
Já agora o corpo era meu, pra guardar ou pra dar, se eu quisesse ia, se não quisesse não ia, acabou-se. Era uma grande diferença, para mim enorme. ” (Página 161)
Em uma sociedade muito machista, esse sopro de feminismo em Dôra é alentador, ainda que por amor ao Comandante ela tenha se anulado também. Sim, é no Livro do Comandante que Dôra, agora no Rio de Janeiro, vivencia a união pelo amor e não pelo interesse de outrem, mas nem por isso mais repleto de felicidades. Queiroz não entrega um romance romântico. Dôra e o Comandante se amam e isso fica claro, mas o amor não faz desaparecer as pendengas diárias, os ciúmes exacerbados e o sentimento de posse de que Dôra há muito foge. A conclusão dessa história é esperada, de um jeito ou de outro o ciclo precisava se fechar. Dôra saiu de Soledade, mas Soledade nunca saiu dela e ela nunca esqueceu de sua gente. A viagem da partida, todas as suas andanças, o regresso e tudo o que Dôra aprendeu em suas peregrinações, são o que darão o tom dos anos vindouros.
A leitura de Dôra, Doralina é cativante. Fornece um bom retrato da vida no interior e nas capitais no período entreguerras, dá uma boa pincelada na cultura nordestina, nas mazelas sociais e na situação política do país. Tudo isso em uma narrativa aconchegante, um tête-à-tête com Dôra que nos enleia do início ao fim. Definitivamente, ler outros livros da Rachel de Queiroz já se tornou mais uma das minhas metas literárias da vida.
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